Aqui há tempos, uma benfiquista simpática, a Pandora, insurgiu-se com o linguajar que utilizei num texto intitulado "Sexo em grupo em véspera do Dia de Namorados".
Como o comentário foi público, e aliás, ainda lá está no exacto mesmo sítio, passo a reproduzi-lo:
“Olha, já reparaste que escreves mais sobre o Benfica do que do teu próprio clube? É isso que me dá gozo em vocês, portistas. Vocês preocupam-se mais com o Benfica do que com o FC Porto. Mesmo com 11 pontos à frente.
Sim, sou benfiquista, e sou-o com um ORGULHO ENORME!
"(...) Seis milhões, mais coisa, menos coisa, foram fornicados, quiçá por via anal, pela nossa vitória. (...)" ??
O vosso grande mal é pensarem que nós somos como vocês: que odiamos o vosso clube. Por amor de Deus, são vocês que odeiam o nosso clube, não somos nós que odiamos o vosso! Nós AMAMOS o Benfica, quer seja campeão ou não, quer leve 5-0 ou 10-0 de clubes como o vosso, porque temos noção do seu valor independentemente dos resultados.
Vocês é que ficam mais felizes com uma derrota do Benfica do que com uma vitória do fcp.
Porque é que não se limitam a falar do vosso? É que não se se já se deram conta, mas quanto mais falam, mais nos tornam maiores. AINDA MAIORES! Sempre ouvi dizer que só me incomoda quem é melhor do que eu.
Nós este ano já não queremos saber do campeonato, porque em Portugal o árbitro não deixa haver campeonato justo (porque será?). QUEREMOS É QUE O BENFICA MANTENHA O SEGUNDO LUGAR E CONTINUE A DAR-NOS AS GOLEADAS E AS ALEGRIAS QUE NOS TEM DADO EM TODAS AS COMPETIÇÕES!
Relativamente a quem pratica melhor futebol EM PORTUGAL nos dias de hoje, porque não admites que o Benfica vos é superior? Quando vocês eram melhores do que nós, nós também o admitiamos. Agora chegou a vossa vez!
Vocês são grandes, e nós somos maiores.
AMO-TE BENFICA”
Na altura, como agora, dado o pouco tempo de que dispunha, abstive-me de responder com o a propósito que merecia. Também não o vou fazer agora. Contudo, considerando a proximidade do nosso embate com o clube de que é adepta a comentadora, vou apenas tecer uns quantos apartes.
Como é usual, começa pelo reparo de que falamos mais sobre o seu clube, do que sobre o nosso, mas confunde o facto de o fazermos com preocupação da nossa parte, para mais tarde concluir que ao nos focarmos insistentemente nele, os tornamos maiores, “AINDA MAIORES”.
É uma conclusão ao género daquela lógica marketinguesca de que, não interessa que falem bem ou mal de nós, apenas que falem.
Lamento informar que não é assim, e nem vale a pena imaginar que será por preocupação que o fazemos. Se assim acontece, e admito que sim, por vezes, é muito mais indo de encontro ao lema do Bibó Porto, carago!:
“Quanto mais mentirem sobre nós, mais verdades diremos sobre eles”.
E as verdades, por vezes são inconvenientes. Mas não é por isso que vamos deixar de trazer à baila certos assuntos. Por isso, obrigado pela sugestão, mas, como até ver, neste País ainda se pode falar e escrever sobre o que quisermos, conformem-se. “É a vida”, disse um dia alguém.
Sobre a questão dos “incómodos”, não é quem é melhor que eu que incomoda, é quem eu deixo que me incomode, ou não posso evitar, como o cão do meu vizinho a ladrar às três da madrugada. Há é quem, pelos vistos, se sinta incomodado.
Depois temos a costumeira vitimização na questão do ódio. Não direi propriamente que odeio o clube em causa. Não me parece que os portistas o odeiem. Porém, não conheço todos os portistas, portanto tenho uma visão um bocado parcelar nesta matéria.
Ódio é um sentimento muito forte. Extremo mesmo. Não se nutrem este tipo de sentimentos senão por quem nos marcou profundamente. Assim sendo, direi que aquilo que sinto se resumirá apenas a um intenso desprezo.
Desprezo por aquele “fazer as coisas pelo outro lado” e, fundamentalmente, desprezo pela superioridade a todos os níveis, mas principalmente moral, que se arrogam, e que resulta unicamente do facto de serem em maior número, mas que ainda está por comprovar. Em suma, a lógica da ditadura democrática aplicada ao futebol.
O texto em questão foi escrito em Fevereiro. Antes, por isso, de irmos ao Estádio da Lucy carimbar oficialmente o título. Daí as referências no comentário a goleadas e ao bom futebol praticado.
Foi naquela altura em que estavam onze pontos atrás de nós, dos quais sete tinham sido roubados, e três estavam no papo, e como tal, a pressão estava toda deste lado. Imagine-se agora!
O tempo encarregou-se de demonstrar a irrelevância desta parte, e votá-la ao esquecimento.
E claro, não podia falta a recorrente alusão a que “em Portugal o árbitro não deixa haver campeonato justo”, tão querida aos adeptos daquele clube a partir de finais dos anos 80, e exponenciada estratosfericamente pela actual sempiterna direcção.
Curiosamente, ao contrário do que afirma a Pandora, nunca vi um qualquer adepto colega seu admitir que algum dia, num qualquer universo paralelo, lhes fomos superiores, por um centésimo de segundo que fosse.
Interessante é quando conjugamos tudo isto com as declarações de amor assolapado, “porque tem noção do seu valor independentemente dos resultados e das goleadas”.
É o fechar do ciclo de praticamente tudo quanto se disse atrás, e a raiz de quase todos os problemas. Aconteça o que acontecer o valor e o merecimento estão lá.
Se ganham é porque merecem, sempre. Se não ganham, mereciam. A parte chata é que é no campo, que se deveriam definir os resultados, e onde de quando em vez surgem as goleadas. E aí nem sempre são os mais fortes, ainda que o custe a admitir.
(ainda gostava de saber o que é que os burros brancos e os cães de caça têm que ver com os sportinguistas e os portistas?!
Se ainda tiverem paciência para ler o texto seguinte. de autor que desconheço, um tal Jacinto Bettencourt, e que foi publicado no blog "31 da Armada", após a vitória por 2-0 sobre o Sporting, na Liga Sagres 2009-2010, verão que apesar das evidentes diferenças na forma, o teor é apenas mais do mesmo, numa versão mais elaborada.
“Mostra a tua raça, o poder e ambição / nós só queremos o Benfica campeão [para ouvir na catedral]
Sem mundo e sem os outros o futebol é uma abstracção. Pensemos, então, o futebol caseiro através da fenomenologia do espírito de Hegel.
Se o espírito subjectivo, enquanto mera consciência ou individualidade, não é capaz de realizar os fins do espírito, entramos na dimensão em que o espírito deve ser considerado objectivamente, isto é, enquanto objectivização da consciência e liberdade. Todos aqueles que percorrem a blogosfera sabem que o espírito objectivo coincide em Hegel com a dimensão onde consciência e mundo se diferenciam, por ser esta a dimensão supra-individual das relações entre homens ou, por outras palavras, a dimensão ética. E como o leitor atento há muito compreendeu, a impossibilidade de analogia possível entre futebol e as ciências que estudam o espírito subjectivo remete aquele desporto para o reino das objectivizações do espírito, impondo-se, assim, analisar o direito, moral e eticidade como os três momentos dialéticos em que o futebol se exterioriza.
O direito, que regula a conduta externa e nasce de uma concepção de liberdade percebida como o direito de cada ser humano actuar autonomamente e no seu próprio interesse, corresponde ao momento do querer feito acto, da apropriação e da propriedade privada. É a dimensão do FC Porto, portanto; dos clubes que se afirmam querendo e tendo, que não olham para além dos seus interesses e da acomodação dos mesmos a alguns limites formais que regem a exteriorização da vontade – aos quais e dos quais recorrem amiúde, aliás (invocando ora a inconstitucionalidade de normas legais, ora a nulidade de escutas, etc.). Aqui encontramos, frequentemente, um adepto que pensa apenas o futebol como uma expressão da vitória e da eficácia concretizadora da vontade de apropriação (de títulos, e não só), não cedendo (veja-se, por exemplo, Paulinho Santos, Bruno Alves) na subordinação da vontade a quaisquer outros princípios reguladores.
A moral, momento antitético do direito, estabelece depois as regras que subordinam a liberdade espontânea ao dever. O futebol dá aqui um passo em frente, deixando de ser mera expressão de vitória e obtenção de títulos, para acolher o dever moral. E quem aqui chega é, evidentemente, adepto do Sporting. E infeliz. É que nesta antítese, o futebol não admite vitórias, glória ou títulos, antes se converte num super-ego incapacitante, numa expressão pouco masculina de limitação e denúncia (ou mesmo de catering, segundo um amigo sportinguista). De facto, o sportinguista não vence no futebol nem deseja vencer pelo futebol, antes pretende vencer o futebol. Neste percurso, está moralmente vinculado à derrota de todos os dias (Dias da Cunha, Dias Ferreira), situando, fatalmente, a sua única vitória no conforto que ainda encontra no (não despiciendo) facto de os seus adversários (Naval, Guimarães, Setúbal) não acatarem as regras morais que o mesmo (e Costinha) entende aplicáveis (algo que no infantil vernáculo verde o adepto traduz por roubo, e que, nas suas variantes, admite como imoral um jogo em que os adversários possuem idêntico número de jogadores em campo). Nesta dimensão identificamos duas diferenças: a diferença que o sportinguista pensa estabelecer a partir daqui face aos adeptos dos restantes clubes (que origina o mito da supremacia civilizacional do sportinguista) e a diferença (que Heidegger certamente definiria como ontológica) no número de títulos conquistados (afinal, não tens, logo não existes).
Chegamos, então, à eticidade (que o mais vulgar blogger, nas conversas do dia a dia, designa de Sittlichkeit), a dimensão onde se atribui finalidade concreta à acção moral mediante o reconhecimento do significado colectivo da mesma. Ignoremos, por hoje, os momentos em que a eticidade se descobra (mas não esqueçamos o sentido que para o benfiquista fazem os apelos dirigidos ao bom pai de família, ao cidadão aplicado – como o é o barbas – e à divindade do clube), para recordar que, no seu mais elevado estádio, a eticidade corresponde a uma forma de unidade superior, simultaneamente formal e emocional de indivíduos, que Hegel, não por acaso, predicou de razão encarnada. Refiro-me, pois claro, à dimensão do Benfica, o glorioso, o maior clube do mundo, por ser este o clube que vence, vence muito e venceu mais do que os outros e, em especial, o FC Porto, sem ter por timbre o refúgio nas regras meramente formais do direito, e que, como o Sporting, soube regular a sua conduta externa por regras não meramente jurídicas e, apesar disso, vencer e jogar futebol (algo que, convenhamos, tem a sua importância). O clube que, embora associado frequentemente ao antigo regime, foi, nesse período, presidido por um comunista; o clube que, das suas raízes populares, ofereceu a presidência a um marquês (e não a um visconde); o clube a quem o poder favoreceu onerando-o com o dever de não contratar estrangeiros; o clube, enfim, que vence as dicotomias, que sintetiza e ultrapassa os dois momentos imberbes do adepto nacional, permanecendo maior e mais vitorioso nos piores momentos, e honrado e firme nos melhores. O Benfica que, através de mim pensado, não se resume ao clube detentor de uma equipa de futebol e uma massa de adeptos ímpares, antes se define com a superior objectivização do espírito no futebol português.
A questão, está fácil de ver, é metafísica. Não a discute qualquer um pois nem todos percorreram a tríade dialética do futebol caseiro (de tal foram apenas dignos seis milhões em território nacional), e até eu me vejo na necessidade de recorrer ao mestre oculto de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Miguel Esteves Cardoso, que tão bem ensinava: afinal, «o Benfica pode jogar mal sem que daí lhe advenha algum mal», sendo suficiente «olhar para os jogadores para ver que sabem que são os maiores, que não precisam de esforçar-se muito, porque são intrínseca e moralmente a maior equipa do mundo inteiro». É certo que o conforto da inevitabilidade da História aplaca a ansiedade do benfiquista que assim evita ceder ao irrascível instinto tripeiro, sem nunca se acomodar no ressabiamento infantil do sportinguista -- pois, como intuía o filósofo que antecedeu o berlinense, «o Benfica, é o Benfica. E o que tem de ser - e é - tem muita força»; mas é também visível que, «quando perdem, [os adeptos do Benfica] não se indignam, não desesperam», como sucede, respectivamente, com os adeptos do Sporting e do FC Porto.
No final, para compreendermos porque o benfiquismo traduz a mais elevada expressão objectiva do espírito no mundo do futebol caseiro, resta-nos reproduzir aquela que constitui, porventura, a mais célebre intuição ontológica de Meister Esteves Cardoso: «o Benfica não joga – digna-se jogar. Não joga para vencer – vence por jogar».
Faltou ontem um golo para a tríade mas no que toca à identidade lógica do real, o Benfica goleia. Gesagt.”
Li, e como disse, não conheço o autor, por isso não consigo alcançar até que ponto, para além da euforia da vitória, haverão por ali ténues nuances de pretenso humor refinado.
Seja como for, tresanda a superioridade por todos os poros. Daquele tipo de superioridade que deixa esmagado um indivíduo como eu, que nunca, em hipótese e tempo alguns, poderia aspirar alcandorar-se ao patamar de tal raça. E ainda bem.
A fazer lembrar aquele tipo de superioridade que uma outra raça achava ter sobre outras, e que aparentemente, apesar de tudo o que tal causou, parece que ainda mantém bem viva relativamente aos povos do sul, beberrões e preguiçosos.
Enfim, tão diferentes, mas tão iguais. A mesma puta da mesma soberba insuportável.
É isto que temos de aturar. É contra isto que nos debatemos. É também contra isto que é a nossa luta.
Isto, e “coincidências” do género da que se segue…
Nota: “gesagt” – dito.